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Dieta cetogénica mata células cancerígenas “de fome”? É segura?

3 Ago 2023 - 09:53

Dieta cetogénica mata células cancerígenas “de fome”? É segura?

A dieta cetogénica está a ser promovida nas redes sociais como uma forma de “melhorar a respiração celular saudável e matar as células cancerígenas de fome”.

Este regime alimentar é caracterizado por uma forte restrição dos alimentos ricos em hidratos de carbono, tais como arroz, massas, batatas e o feijão. Além disso, é rico em gorduras e moderada em proteína.

Em vários artigos e publicações online, refere-se que esta dieta reduz os níveis de glicose, ou seja, do “açúcar presente no sangue” do qual as células tumorais se alimentam. Logo, defendem os seguidores desta dieta, isto fará com que estas células morram “de fome”.

Mas será mesmo assim? A dieta cetogénica é eficaz no combate ao cancro? Seguir este regime alimentar mata “células cancerígenas de fome”?

É verdade que a dieta cetogénica mata células cancerígenas “à fome”?

Como as células tumorais se alimentam de glicose, o senso comum leva os seguidores da dieta cetogénica a presumir que, ao reduzirem os níveis de glicose no sangue, estarão a matar estas células “à fome”. Mas, na prática, não é bem assim.

A glicose é, de facto, a principal fonte de energia das células. No entanto, quando não é ingerida através da alimentação, o organismo consegue produzi-la endogenamente, ativando os ciclos metabólicos de produção energética alternativos. Este mecanismo permite recorrer às reservas de ácido gordo (gordura) e transformá-las em glicose.

Além disso, todas as células se alimentam de glicose e não apenas as células cancerígenas. Logo, se a redução dos níveis de glicose realmente matasse as células tumorais “à fome”, também as células saudáveis do corpo morreriam por falta de “combustível”.

Em declarações ao Viral, a médica, nutricionista e investigadora Paula Ravasco lembra que as próprias células cancerígenas também são capazes de produzir glicose endogenamente.

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“As nossas células vivem de glicose. Se não é consumida, será produzida. O nosso organismo é uma máquina perfeita que está desenhada para funcionar de uma determinada maneira. Podemos modular ligeiramente o seu metabolismo, mas nunca poderemos alterar a forma como funciona”, explica a diretora da pós-graduação internacional em Nutrição em Oncologia da Universidade Católica.

A especialista em nutrição oncológica aponta que, de facto, “há estudos, feitos em modelos animais”, em que se mostra uma relação entre o tamanho do tumor e a administração endovenosa de glicose.

Num desses estudos, publicado em 2008, os roedores aos quais foi administrada glicose apresentaram um crescimento mais rápido do tumor do que os que não receberam este monossacarídeo.

A médica clarifica, contudo, que “isso não se verifica, de todo, nos humanos”, sublinhando ser “pouco razoável pensar que experiências em animais ou linhas celulares se podem transpor de forma direta ou imediata os humanos”. Aliás, acrescenta, “muita da evidência que se gera em animais de experiência nunca se irá verificar em humanos”.

A utilização da dieta cetogénica para reduzir os tumores “já foi testada em pessoas”, mas “não se verificou benefício no tamanho do tumor”, prossegue.

De facto, vários artigos de revisão referem a falta de qualidade dos estudos realizados sobre esta matéria.

Uma revisão sistemática publicada em 2017 identificou apenas 15 artigos sobre a utilização de dieta cetogénica em pacientes com cancro – dos quais cinco são casos clínicos, oito estudos de perspetiva e dois estudos de retrospetiva. 

Na análise feita aos artigos, os investigadores concluíram que os estudos apresentam “falhas de consistência e não utilizam protocolos de padrões de dieta claros, comparáveis e consistentes”.

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“Em contraste com a atenção considerável dada por parte de investigadores, médicos e media ao potencial papel [da dieta cetogénica] no tratamento do cancro, falta evidência dos benefícios no que toca ao desenvolvimento e progressão do tumor assim como na redução dos efeitos secundários das terapias oncológicas”, lê-se nas conclusões dos autores do artigo, que destacam a necessidade de estudos “mais robustos e consistentes” sobre o tema.

Outro estudo, publicado em 2018, avança que a utilização da dieta cetogénica em pacientes com cancro “mostra um potencial promissor, mas resultados inconsistentes”.

“O limitado número de estudos e as diferenças no design e nas características dos estudos contribuem para uma baixa qualidade da evidência, limitando a capacidade de tirar conclusões baseadas na evidência”, lê-se no artigo.

Paula Ravasco sublinha também que pode existir um “viés de recrutamento” nos estudos realizados em humanos, dado que “pode haver um conflito ético em recrutar doentes oncológicos em risco nutricional, com perda de peso ou com défices nutricionais para estudos clínicos em que se propõe uma dieta com evicção de hidratos de carbono”. 

Por essa razão, as conclusões destes estudos “não são transponíveis para todos os doentes oncológicos, mas, porventura, apenas para alguns”.

Os riscos da dieta cetogénica nos doentes com cancro

Além da falta de evidência científica robusta sobre a matéria, a utilização da dieta cetogénica pode ser perigosa para os doentes oncológicos.

Ao retirar um grupo inteiro de alimentos das refeições diárias – neste caso, os hidratos de carbono – o paciente está também a excluir um conjunto de nutrientes importantes para a saúde e bem-estar.

A situação torna-se mais perigosa quando o próprio cancro – quer pela doença, quer pelo tratamento – está, em muitos casos, associado a perda de apetite, redução do peso (com maior ou menor significado) e a perda seletiva de massa muscular

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As restrições associadas à dieta cetogénica poderão contribuir, por isso, para a redução do peso e para o aumento do risco de má nutrição do paciente com cancro, o que pode estar associado a uma evolução mais rápida da doença.

“Evidência com mais de uma década mostra que o doente desnutrido, com maior perda de massa muscular secundária à sua doença ou tratamentos, tem uma sobrevida expectável menor por comparação com doentes bem nutridos e sem perda de massa muscular”, afirma a nutricionista.

Por essa razão, Paula Ravasco destaca a importância de “nutrir adequadamente a pessoa com cancro”, o que implica “uma alimentação completa de forma a incluir todos os nutrientes, nos quais estão hidratos de carbono”.

Em conclusão, a dieta cetogénica não faz as células cancerígenas “morrer de fome”, dado que o organismo continua a produzir glicose para sobreviver. 

A utilização desta dieta em doentes oncológicos tem vindo a ser estudada, mas não há evidência científica robusta que confirme os benefícios em humanos

Por outro lado, este regime alimentar pode representar um risco para os doentes oncológicos, uma vez que, ao retirar os hidratos de carbono do prato, estará também a eliminar outros nutrientes importantes para uma boa saúde nutricional.

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Este artigo foi desenvolvido no âmbito do European Media and Information Fund, uma iniciativa da Fundação Calouste Gulbenkian e do European University Institute.

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Categorias:

cancro

Etiquetas:

Produtos naturais

3 Ago 2023 - 09:53

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